Revista Ensayos Pedagógigos

Edición Especial, 2020
ISSN: 1659-0104 / e-ISNN: 2215-3330

URL: http://www.revistas.una.ac.cr/ensayospedagogicos

LICENCIA: (CC BY NC ND)


O relatório de estágio como difusor de reflexões na graduação: análise e interpretação de dados nos relatórios de estágio do Programa Ler e Escrever

Sheila Perina de Souza1

Universidade de São Paulo

Brasil

sheila.perina.souza@usp.br

Resumo

Este trabalho insere-se na discussão sobre a escrita e a formação de professores no Brasil. Damos especial atenção a produção escrita feita no estágio, pois é neste momento que o professor em formação debruça-se sobre a realidade escolar, confronta-a com as teorias aprendidas ao longo do curso e tem a possibilidade de trilhar caminhos próprios, intervindo em direção às mudanças que ele julga necessárias. Temos como principal objetivo analisar e interpretar as escritas de estudantes do curso de pedagogia no relatório de estágio do Programa Ler e Escrever. Questionamos em que medida os registros feitos nos relatórios de estágio configuram-se como dados capazes de gerar reflexões e produzir conhecimento. O foco de nossa atenção não é o que o aluno pesquisador observou, mas a maneira como registra o que ele observou. Teoricamente apoiamo-nos em Barzotto e Eufrásio (2009) que consideram que o relatório de estágio é um importante instrumento para se partir do concreto e chegar a reflexões de cunha teórico. Seguindo esses autores, e como estratégia para que o relatório de estágio tenha um caráter mais científico, sugerimos que o graduando em campo assuma a postura de um pesquisador, e inspire-se nas habilidades que devem ter um etnógrafo na coleta dos dados e no uso do caderno de campo. Observamos nos relatórios de estágio por um lado descrições que não recebem tratamento acadêmico, e por outro coletas de dados que parecem inspirar-se na postura de etnógrafo em sala de aula, mas ainda não apresentam uma análise sólida. Concluímos que para que se produza um relatório de estágio que contribua com a produção de conhecimentos na universidade, e que reflita sobre questões da realidade escolar consideramos a pertinência do uso comprometido do caderno de campo e a coleta de dados inspirada etnografia.

Palavras-chaves: escrita, formação de professores, estágio, relatório, etnografia

Abstract

This paper is part of the discussion about writing and teacher training in Brazil. We pay special attention to the written production done in the internship because it is at this moment that the teacher in training focuses on the school reality, confronts it with the theories learned throughout the course, and has the possibility to follow his or her own paths, intervening towards the changes deemed necessary. Our main objective is to analyze and interpret the writings of students in the pedagogy course in the internship report of the Read and Write Program. We question to what extent the records kept in the internship reports are configured as data capable of generating reflections and producing knowledge. The focus of our attention is not on what the researcher-student observed, but on how he or she records the process of being observed. Theoretically, we rely on Barzotto and Eufrásio (2009) who consider that the internship report is an important instrument to start from the concrete and arrive at theoretical wedge reflections. Following these authors, as a strategy for the internship report to have a more scientific character, we suggest that the graduate in the field assume the posture of a researcher and be inspired by the skills that an ethnographer should have in collecting data and using the field notebook. We observe in the internship reports, on the one hand, descriptions that do not receive academic treatment, and, on the other hand, data collections that seem to be inspired by the ethnographic posture in the classroom, but they still do not have a solid analysis. We concluded that, in order to produce an internship report that contributes to the production of knowledge at the university which reflects on issues of school reality, we consider the pertinence of the committed use of the field notebook and the collection of data inspired by ethnography.

Keywords: writing, teacher education, internship, report, ethnography

Introdução

Compreendemos a realização do estágio e a produção do relatório como parte fundamental da formação do professor. Para sustentar a importância do estágio, tomamos por base alguns autores que já se dedicaram a estudar o assunto, tais como Garrido (2002) e Lima e Pimenta (2004). Esse trabalho se insere na pesquisa “A escrita sobre as práticas de ensino em licenciaturas do Brasil, da Costa Rica e de Honduras: registro, análise e produção de conhecimento” (CNPq 458449/2015-8) que tem como objetivo geral pesquisar os processos e produtos da escrita que licenciandos realizam a partir de práticas de ensino, em diversas áreas de formação, para verificar em que condições os enunciados produzidos por eles podem adquirir o estatuto de “conhecimento”. A relevância do momento de estágio como parte fundamental da formação de professores tem sido tematizada por teóricos, e a partir das pesquisas apresentadas continuaremos a investigar a experiência do estágio.

O estágio oferece ao estudante a possibilidade de refletir sobre o que é ensinado na universidade e o modo como a produção científica atinge a realidade escolar e se a contempla. E é nesse momento que o professor em formação se debruçará sobre a realidade, irá questioná-la e intervirá para modificá-la. Essa intervenção pode acontecer no momento da regência ou futuramente, em suas práticas como docente.

Assim como afirmam Lima e Pimenta (2004), o estágio deixa de ser um apêndice do currículo e passa ocupar um espaço significativo no corpo dos conhecimentos do curso de formação de professores nos últimos anos. As autoras afirmam quanto ao estágio:

Cabe-lhe desenvolver atividades que possibilitem o conhecimento, análise, a reflexão do trabalho docente, das ações docentes, nas instituições, a fim de compreendê-las em sua historicidade, identificar seus resultados, os impasses que apresenta, as dificuldades. Dessa análise crítica, à luz dos saberes disciplinares, é possível apontar as transformações necessárias no trabalho docente, nas instituições (Lima e Pimenta, 2004, p. 55).

Dada a importância do relatório de estágio como ferramenta indispensável para consolidação das experiências e reflexão sobre as vivências no estágio, pretende-se abordar neste artigo a análise dos dados dos relatórios de estágio dos licenciandos que fizeram parte do Programa Ler e Escrever.

Contextualização

Os relatórios de estágios que aqui serão analisados pertencem ao Programa Ler e Escrever, desenvolvido pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. O Programa Ler e Escrever constitui-se como uma política pública para o Ciclo I e tem como objetivo promover a melhoria do ensino na rede estadual. O programa inclui formação, acompanhamento, elaboração e distribuição de materiais pedagógicos. Com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento das competências de leitura e escrita dos alunos das séries iniciais, o programa conta com o Projeto Escola Pública e Universidade na Alfabetização – conhecido como “Bolsa Alfabetização”. Esse projeto prevê presença do aluno pesquisador, que é um estudante de Letras ou Pedagogia que auxiliará o professor do 1º ano. O aluno pesquisador atua diretamente com os alunos dos primeiros anos, planejando as atividades complementares em sala de aula na execução de atividades didáticas, participando de encontros de formação organizados pela universidade à qual pertence e elaborando diagnósticos pedagógicos dos alunos. Os relatórios que aqui serão analisados são dos anos de 2006 e 2007, de alunos do curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo que participaram do Programa Ler e Escrever.

De acordo com as diretrizes do curso de Pedagogia no Brasil, cabe ao estudante aprofundar-se nas questões que competem ao letramento e ao ensino da matemática, no entanto, ressalta- se também a importância do envolvimento do aluno nas pesquisas educacionais. Assim como propõe o Programa Ler e Escrever ao nomear o graduando de aluno pesquisador (Brasil, 2005), usaremos esse termo para nos referirmos ao graduando que está na escola.

O estágio no Programa Ler e Escrever proporciona ao aluno pesquisador a possibilidade de expandir sua formação teórico-prática. Durante o período de estágio o aluno participa de formações na universidade, no que concerne aos processos de ensino e aprendizagem envolvidos no letramento e, por meio da atuação direta com os alunos do ensino fundamental, ele se familiarizará com o cotidiano escolar.

Durante o estágio no Programa Ler e Escrever o aluno pesquisador está envolvido em um projeto de pesquisa educacional por meio da produção do relatório de estágio, que permitirá a construção de interpretações acerca das práticas desenvolvidas e o estabelecimento de diálogos com os conhecimentos acumulados no decorrer da graduação.

André (2001) afirma que durante muitos anos o papel do pesquisador era o de um sujeito de “fora”, mas enfatiza que nos últimos anos ocorreu um aumento da valorização do olhar “de dentro”, e assim cresce o número de trabalhos que se analisam a experiência do próprio pesquisador. Assim, consideramos que a posição ocupada pelos alunos pesquisadores possibilita a reflexão sobre o cotidiano escolar a partir de uma nova ótica, “de dentro”. O aluno pesquisador tem a possibilidade de observar, ensinar, aprender e articular a teoria e prática para desenvolver reflexões.

Relatórios de estágios: uma análise

Em cinco dos doze dos relatórios de estágio analisados observamos casos em que os alunos pesquisadores tendem a qualificar a atividade ou as aulas desenvolvidas expondo suas impressões por meio de adjetivos que apresentam uma amplitude de significados. Essas impressões são muitas vezes apresentadas de forma genérica; em muitos casos não há traços de que a análise sobre o cotidiano escolar esteja sendo feita por um profissional em formação da área da Educação, dada a vagueza com que é apresentada.

Observemos a tabela abaixo, que apresenta a transcrição de alguns trechos dos relatórios, seguido por observações feitas por nós.

Tabela 1. Observações sobre trechos dos relatórios.

Trechos dos relatórios de estágios

Observações

“Seguindo as orientações do material do TOF e pelo sucesso que tivemos no mês passado a professora continuou aplicando jogos com o trabalho em dupla, em grupos ou até individualmente.” (0007-2006).

Não há descrição de quais atividades foram feitas no mês passado, nem como se chegou à conclusão de que foi um sucesso.

“Colhi alguns depoimentos de alunos, professores, pais e coordenação sem nenhuma exceção todos parabenizaram-me pelo excelente trabalho, postura e dedicação para com os alunos.” (0010- 2006).

Ao fim do Projeto Ler e Escrever o aluno pesquisador descreve esse trecho ao lado. Ele aponta que foram recolhidos depoimentos, mas não expõe os depoimentos no relatório de estágio, apenas menciona a existência desses dados e finaliza com uma análise simplista dizendo que foi parabenizado pelo trabalho, não desenvolve os pontos sobre os quais ele foi elogiado.

“Trabalhamos com jogos lúdicos de somar e subtrair quantidade, pois ainda existiam alunos com dificuldade em exercício de casas decimais. Formamos dentro da sala diferentes grupos mesclando os que possuíam mais facilidade com que os que apresentavam mais dificuldade, privilegiando principalmente no processo daqueles que não pareciam avançar. Foi muito bem produtivo essa atividade.” (0011-2006).

O aluno(a) pesquisador descreve superficialmente a atividade desenvolvida e conclui avaliando-a como produtiva. Ele não aponta quais os pontos que o levou a considerar a atividade produtiva.

“Houve uma série de atividades com os gibis da turma da Mônica que foram enviados à escola. As crianças se divertem muito, e é interessante observar como as elas fazem relações entre a escrita e as figuras.” (0021-2006).

O autor (a) do relatório ressalta que durante a atividade houve um momento importante que contribuiu para a aprendizagem das crianças, mas deixa de descrever o modo como as crianças fazem relações entre a escrita e as figuras e acaba por não analisar essas relações.

Notamos nos trechos acima a insuficiência na apresentação das descrições das atividades e dos dados. Quando as atividades não são apresentadas de forma minuciosa o uso dos dados recolhidos pode se tornar inviável para análises posteriores, pois não possibilita que o leitor faça inferências sobre o contexto da situação de ensino e aprendizagem. As reflexões feitas pelos autores dos relatórios se tornam deficientes, assim como a exposição dos dados. Barzotto e Eufrásio (2001) apontam que o registro e a discussão sobre a atividade são essenciais para uma análise crítica e completa das atividades realizadas.

O modo como é feito o registro das atividades observadas definirá a qualidade das análises posteriores. Assim, se a descrição dos dados não apresenta solidez e clareza, as reflexões futuras também se tornarão deficitárias. A descrição minuciosa das atividades e apresentação da produção dos alunos é fundamental para que os dados recolhidos possam ser usados para embasar questionamentos e reflexões futuras.

Observemos alguns trechos de outro o relatório que nos trará percepções diferentes das apresentadas acima:

“Na primeira vez que participei dessa aula, os alunos escreveram em pedaços de papelão as cinco vogais e colocaram esses pedaços em tampinhas de garrafa pet. A partir disso, deveriam formar palavras normalmente onomatopeias, com as vogais. Na lousa, a professora sistematiza sempre ligando com a mesma cor de giz as letras da palavra encontrada, da seguinte forma.

Essas três propostas foram realizadas aproximadamente no fim de abril, fim de maio fim de junho, ou seja. Com um espaço de um mês. Interação dos alunos com a atividade foi sendo maior gradativamente. A sala qual trabalho foi montada no início de abril pelos alunos pré-silábicos. Considero que devido ao estágio da alfabetização que se encontravam esse ‘jogo’ foi coerente, já que, iniciou-se coma formação de sons/palavras a partir das vogais.”

De forma breve o aluno(a) pesquisador, em seu relatório, apresenta a atividade e o modo como foi desenvolvida. Ele descreve o papel dos alunos e exemplifica por meio da imagem a forma como a professora contribuiu para o desenvolvimento da atividade. Ele especifica em que período do ano letivo a atividade foi desenvolvida e contextualiza a situação de aprendizagem dos alunos ao realizarem a atividade. Por fim faz observações positivas acerca da pertinência da atividade para o momento de aprendizagem dos alunos. Observamos que seria pertinente a descrição da interação dos alunos para compreendermos como foi feita a mensuração de que a interação dos alunos aumentou gradativamente.

Embora observemos que não foram expostas transcrições de falas, nem situações de aulas completas, o aluno pesquisador conseguiu apresentar dados sólidos que lhe possibilitarão fazer uma análise reflexiva sobre a situação de ensino e aprendizagem. Nem sempre a apresentação de dados sólidos pressupõe a transcrição de falas ou de situações completas de ensino e aprendizagem. É importante exigir do dado o que é exigível no momento da apresentação da análise, compreender que descrição minuciosa nem sempre está acompanhada de grandes transcrições de falas e atividades.

É importante também considerarmos que a apresentação de dados, por si só, não faz com que o relatório de estágio cumpra seu papel de promover novas reflexões sobre o cotidiano escolar. Mesmo quando há a apresentação de dados sólidos e completos, o relatório não atinge sua proposta se não houver reflexão.

Observemos trechos do relatório 0001-2006:

“[...] As observações foram anotadas em um ‘diário’, escritos pelos alunos no caderno de classe. No dia 30.10, o feijão da aluna Flávia morreu por falta de água, e a professora pediu aos alunos que desenhassem o feijão morto e escrevessem:

‘O feijão da Flávia Morreu porque estava sem água’’

A aluna Monick, especialmente interessada por questões da natureza (trouxe de sua casa um casulo de lagarta para ser observado pelos colegas e um potinho com vários brotos de feijão e é a aluna que mais faz perguntas sobre o assunto, escreveu da seguinte forma:

O feijão mofeu da Flavia porque ida vase agua

Ela me chamou e perguntou ‘Ta certo?’

‘Olha Monick, tá muito bom, só têm umas coisinhas aqui que a gente tem que arrumar. Olha só, o que está escrito aqui’ (e aponto para o nome da Flavia na folha)

‘Flavia’

Isso mesmo, E o que você escreveu aqui?’ (aponto para ‘mofeu’) ‘MO...REU?’

‘Como é que faz o RE’? ‘R+E?’

‘isso, e o que você escreveu aqui?’ ‘MOFEU’

Ela apaga e escreve ‘MORREU, e antes de eu falar que se escreve com dois erres, o aluno Welington (que sempre termina as atividades rapidamente e gosta de passar pelas carteiras dos colegas para ajudar) olha e fala?

‘Morreu é com dois erres’ [...]”

Acreditamos que a fidedignidade dos dados só possível pelo uso do caderno de campo, pois é nele em que se registram as descrições como a de cima, é por meio do caderno que se anota as experiências que poderão ser refletidas futuramente no momento da elaboração do relatório de estágio.

A aluna pesquisadora descreve um longo trecho de uma atividade que ocorreu na escola. Fornece detalhes que certamente nos permitem imaginar o local e a cena que estão acontecendo. Em seu relatório de estágio a aluna descreve a atividade proposta pela professora, contextualiza as ações das crianças e transcreve diálogos. A aluna pesquisadora continua descrevendo a atividade em sala de aula, mas, ao concluir a descrição, já inicia outro tópico. Abaixo se encontra a continuação e a finalização da transcrição:

Entro de outro projeto trabalhado em outubro, ‘Quem quer brincar?’ foi feita uma atividade, no dia 16.10, cujo objetivo era apresentar aos alunos textos instrucionais de brincadeiras diversas.

Ao fim da transcrição a aluna pesquisadora inicia outro tópico, sem fazer algumas reflexões sobre os dados. Teixeira (2003), em seu texto que trata da análise dos dados na pesquisa cientifica, afirma que:

A análise de dados é o processo de formação de sentido além dos dados, esta formação se dá consolidando, limitando e interpretando o que as pessoas disseram e o que o pesquisador viu e leu, isto é, o processo de formação de significado. A análise dos dados é um processo complexo que envolve retrocessos entre dados pouco concretos e conceitos abstratos, entre raciocínio indutivo e dedutivo, entre descrição e interpretação. Estes significados ou entendimentos constituem a constatação de um estudo. (Teixeira, 2003, p. 191-192)

A análise dos dados recolhidos no estágio é o ponto alto do relatório de estágio, pois será feita por alguém que vivenciou o processo como parte ativa dele. É a partir da interpretação dos dados que o relatório de estágio ganha sentido e se torna um difusor de reflexões; sem a interpretação dos dados o relatório de estágio está fadado a ser um texto descritivo. No caso acima, a aluna pesquisadora não buscou identificar os resultados, impasses, ou mesmo traçar paralelos entre a prática e a teoria.

O Construtivismo nos relatórios de estágio do Programa Ler e Escrever

Assim como foi citado acima, o Projeto Ler e Escrever adota uma abordagem construtivista. Todo o material didático e a formação dos componentes do projeto adotam princípios do construtivismo. Assim, os alunos das diversas universidades que participam do projeto, nesse momento de sua graduação, têm a oportunidade de se aproximarem de uma corrente de pensamento específica.

De acordo com os princípios curriculares do Curso de Pedagogia encontrados no Parecer CNE/CP 5/2005, ao longo do curso o graduando em Pedagogia recebe aporte teórico de diferentes autores e diversas teorias são estudadas.

O graduando em Pedagogia trabalha com um repertório de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolidação será proporcionada pelo exercício da profissão, fundamentando-se em interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética. Este repertório deve se constituir por meio de múltiplos olhares, próprios das ciências, das culturas, das artes, da vida cotidiana, que proporcionam leitura das relações sociais e étnico-raciais, também dos processos educativos por estas desencadeados. (Brasil, 2006, p. 6)

Considerando o trecho acima, que garante a pluralidade de conhecimentos teóricos e a necessidade de conteúdos que possibilitem ao graduando a multiplicidade de olhares, observamos que se espera que o aluno pesquisador de Pedagogia, ao entrar no Projeto Ler e Escrever, possua uma gama diversificada de aportes de conhecimentos teóricos, a fim de que possa traçar paralelos, críticas, e estabelecer correlações entre a prática e as diversas teorias estudadas até o momento da graduação. No entanto, o que observamos é que existe uma inclinação dos alunos pesquisadores a adotarem somente o construtivismo como base norteadora para suas análises sobre a alfabetização dos alunos dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Observemos a transcrição do relatório de estágio 0005 2006:

“Neste último mês de estágio concentrarei esforços nestes alunos pré-silábicos, sem deixar de continuar o trabalho com os silábicos-alfabéticos [...]. As crianças silábicas fazem as atividades, pedem auxilio, solicitam ‘lição’ quando terminaram a que fizeram, solicitam até mesmo alguma ‘lição’ de sua preferência: já os pré-silábicos não fazem o que lhes foi solicitado ou fazem olhando para todos os lados, sem se concentrar, sem “querer”: por isso, naturalmente, as outras crianças avançaram, e estas, não, o que é frustrante e desafiador para mim, pois o meu trabalho é, afinal, conquistar estes pré-silábicos que ainda não ‘se encaixaram’ no sistema escolar, e que são os alunos que mais precisam de atenção.”

Podemos observar que a aluna pesquisadora optou por usar as hipóteses sobre as fases da escrita de Ferreiro e Teberosky encontradas na obra Psicogênese da Língua Escrita. Dos relatórios que analisamos foi recorrente o uso das fases da escrita de Ferreiro e Teberosky para considerar as hipóteses de escrita dos alunos. Compreendemos a grande relevância do estudo feito por essas autoras. Mas questionamos o uso dessas titulações para a classificação pessoal dos alunos em questão.

Observamos que essas titulações muitas vezes recaem sobre a criança e não somente sobre a sua fase de escrita, que é mutável e está constantemente em progresso. No exemplo acima podemos perceber que a hipótese silábica serve para titular os alunos que melhor se adaptam a rotina escolar; os alunos pré-silábicos são titulados como crianças que não se concentram e não fazem o que lhes é solicitado. Ou seja, podemos observar que no caso acima as fases de Emilia Ferreiro não são usadas somente para fazer menção à escrita.

Observamos que nos relatórios de estágio analisados não são usadas outras correntes além do construtivismo. Constatada essa problemática, levantamos duas hipóteses que buscam justificar a ausência de pluralidade teórica nas análises do cotidiano escolar.

1.Os alunos pesquisadores não são incentivados a usarem diferentes correntes teóricas para análise de seus dados;

2.Os alunos pesquisadores, no momento em que são inseridos no projeto, não tiveram contato durante a graduação com uma multiplicidade de teorias.

As duas hipóteses para nós são consideradas pertinentes. A universidade pode não estar cumprindo seu papel de ampliar o aporte teórico, focalizando apenas em algumas correntes de pensamento, ou ainda há pouco incentivo à expansão teórica por parte dos docentes do Programa Ler e Escrever, tanto os docentes da escola básica quanto os da universidade.

Consideramos que as duas hipóteses constituem-se da mesma explicação, a tentativa de superação dos métodos de alfabetização anteriores à chegada do construtivismo.

A partir da década de 1980, introduziu-se no Brasil o pensamento construtivista sobre a alfabetização, resultante principalmente das pesquisas sobre psicogênese da língua escrita desenvolvidas pela pesquisadora argentina Emilia Ferreiro. Esse pensamento abriu espaço para uma “revolução conceitual”, nas palavras Mortatti (2006), pois sai do campo dos métodos de ensino para o processo de aprendizagem do indivíduo, descartando teorias práticas tituladas de tradicionais.

A partir de então, verifica-se, por parte de autoridades educacionais e de pesquisadores acadêmicos, um esforço de convencimento dos alfabetizadores, mediante divulgações massivas de artigos, teses acadêmicas, livros e vídeos, cartilhas, sugestões metodológicas, relatos de experiências bem sucedidas e ações de formação continuada, visando a garantir a institucionalização, para a rede pública de ensino, de certa apropriação do construtivismo. (Mortatti, 2006, p. 10)

Podemos considerar que esse esforço de convencimento sobre as práticas construtivistas foram bem sucedidas e destacamos, além do Programa Ler e Escrever, da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que adotaram o construtivismo, consolidando e legitimando essa corrente e por consequência deixando de lado outras correntes teóricas e métodos.

Em seu artigo “História dos métodos de alfabetização do Brasil”, Mortatti (2006) traz reflexões sobre a história do ensino da leitura e escrita na fase inicia da escolarização em São Paulo, a partir no século XX. E afirma sobre os métodos e teorias de alfabetização do passado e do presente.

Se quisermos mudar ou manter nossa situação presente e projetar outro futuro, em vista do que foi aqui apresentado não podemos desconsiderar a complexidade do problema nem o passado desse ensino, ingenuamente supondo que, em relação a esse passado, possamos, ou efetuar total ruptura, ou, de maneira saudosista, buscar seu total resgate, como se não tivesse havido nenhum avanço científico, de fato, nesse campo de conhecimento. É preciso conhecer aquilo que constitui e já constituiu os modos de pensar, sentir, querer e agir de gerações de professores alfabetizadores (mas não apenas), especialmente para compreendermos o que desse passado insiste em permanecer. (Mortatti, 2006, p. 15)

Faz-se necessário que os estudantes tenham contato com os diversos aportes teóricos sobre alfabetização, abordagens que foram usadas no século passado, e também as atuais, para além do construtivismo. No momento de estágio o aluno poderá confrontar as diferentes abordagens, pois terá contato com prática e poderá construir novas analises referentes às práticas atuais em educação. A adoção de apenas uma abordagem teórica reduz o direito do graduando de estar imerso em uma situação de ensino que amplie seu repertório de conhecimentos teóricos.

Considerações Finais

O momento de realização do estágio é um período da graduação muito fértil para a construção de novas indagações sobre o cotidiano escolar. É nesse momento que o estudante encara a realidade de sua profissão. Nessa fase ele tem a oportunidade de desenvolver análises e lançar questionamentos sob o auxílio de dois professionais de sua área, o professor universitário e o professor do ensino básico. Todo esse processo é muito propício e rico para a produção de novos conhecimentos e para a difusão de novas ideias. É no estágio que o professor em formação inicia o exercício de ser um professor que reflete na prática e sobre a prática (Nóvoa, 1992).

Entendemos que a formação do professor deve passar pela reflexão sobre o seu saber e seu saber fazer, assim como, diante da nova aprendizagem, refletir sobre a sua utilização. Teorias, práticas e experiências passadas deverão ser contempladas como objeto de estudo e de reflexão, pois elas são indissociáveis e a mudança de uma delas implica o repensar e o mudar de outra. (Darsie e Carvalho, 1996, p. 1)

Consideramos que a experiência de estágio é objeto de estudo e reflexão, que poderá ser analisada no presente e ou no futuro. Acreditamos que por meio das reflexões e análises realizadas poderão ser concretizadas transformações nas práticas escolares. Por considerarmos a experiência do estágio objeto de análise, reflexão e transformação, damos grande ênfase na importância de um relatório de estágio completo, que exponha os dados com clareza, de modo a proporcionar uma reflexão sólida. Somente um registro completo, com dados claros, possibilitará que a experiência de estágio seja objeto de estudo e reflexão, e possa colaborar com as transformações das práticas escolares.

Referências

André, M. (2001). Pesquisa e educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, 113, 51-64 julho de 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n113/a03n113.pdf>.

Barzotto, V. H. & Eufrásio, D. (2001). O relatório de estágio como manifestação do perfil profissional em Letras. Revista de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa. Número 3. Disponível em: <http://www2.fe.usp.br/~lalec/revistamelp/numeros/numero03/artigo_barzotto_eufrasio. htm>.

Parecer CNE/CP 5, de 13 de dezembro de 2005. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rcp01_06.pdf>.

Darsie, M. M. P. & Carvalho, A. M. P. (1996) O início da formação do professor reflexivo. Revista da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 22 (2), 90-108.

Ferreiro, E. & Teberosky, A. (1985). Psicogênese da língua escrita. (D. M. Lichtenstein, L. DiMarco e M. Corso, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas.

Mortatti, M. R. L. (2006, abril) História dos métodos de alfabetização no Brasil. Seminário “Alfabetização e Letramento em Debate”, Departamento de Políticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, Brasília.

Nóvoa, A. (1992) Formação de professores e a formação docente. In Professores em formação. Lisboa, Dom Quixote.

Pimenta, S. G. (2002) O estágio na formação de professores: unidade teoria e prática? São Paulo: Cortez.

Pimenta, S. G. & LIMA, M. S. L. (2004) Estágio e docência. São Paulo. Cortez Editora.

Projeto Bolsa Escola Pública e Universidade na alfabetização (2015). Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil. Disponível em: <http://lereescrever.fde.sp.gov.br/Handler/UplConteudo.ashx?jkasdkasdk=281&OT=O>.

Teixeira Barth, E. (2003) A análise de dados na pesquisa científica. Importância e desafios em estudos organizacionais. Desenvolvimento em Questão, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Ijuí, Brasil, 1 (2), 177-201.


http://dx.doi.org/10.15359/rep.esp-20-1.8

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